Não se preocupe: não vou roubar o seu nicho de mercado
Notas para uma pedagogia crítica fetichista
A maneira mais estratégica de começar este texto é dizendo quem sou e de onde escrevo.
É que sou um artista dissidente (trans, freak e o que mais a sua imaginação permitir) e falo da capital de Santa Catarina, o estado mais fascista do Brasil.
Existem, aqui, pessoas que dedicam uma vida inteira para atacar comunidades LGBTQIA+, os quilombos, os territórios originários, a arte popular, os direitos humanos básicos, a laicidade do Estado, o ensino superior público e de qualidade, etc.
Parece corriqueiro para você? É só buscar no google “células neonazistas SC”, “exame toxicológico universidade do estado SC” e “congresso antifeminista”. Depois seguimos a conversa.
Fetichismo como ação política contrassexual
Falar de fetiche — e, mais do que isso, ser abertamente fetichista, trans, freak, não-monogâmico, artista, professor — em Santa Catarina não é a mesma coisa que ser fetichista em uma capital cosmopolita.
Aqui, na cidade-ilha, eu não consigo desvincular o fetiche de um posicionamento político crítico e radical. Uma coisa é certa: estamos sujeites a muitas sanções sociais quando assumimos um posicionamento crítico e uma identidade desviante em meio a uma guerra moral — esta, inclusive, financiada pela própria máquina do Estado.
Como disse jota mombaça (2019):
Isso aqui é uma barricada! Não uma bíblia
É porque penso a partir dessa barricada trans, punk & anti-fascista que encontro mais diferenças do que pontes na forma como temos discutido a cena e a ética fetichista em diferentes partes do país.
Spoiler: pra nós, dissidentes na bolsolândia, o babado não é moleza e a briga é feia. Ainda assim, eu gostaria de tentar.
Do que falo quando falo de fetichismo?
Explico já, antes que haja pânico moral e distorções teóricas perigosas.
Quando falo de fetiche, não quero me aproximar do conceito de fetiche da psicanálise, tampouco do marxismo.
O fetichismo a que me refiro está relacionado ao BDSM, uma contracultura que engloba pessoas praticantes de atividades como restrição de movimentos/bondage, disciplina, dominação, submissão, sadomasoquismo e outros tipos de comportamento consentido e realizado entre pessoas adultas.
Penso no fetichismo como uma resistência direta à domesticação e aniquilação da força vital, promovida pelo sistema capitalista petrosexorracial — isto é, a fase específica do capitalismo que vivemos hoje, nas palavras de Paul Preciado.
Sabemos que a normatividade de gênero e de sexualidade, bem como a hierarquia racial, são elementos centrais do capitalismo, dos modos de organização do trabalho e do próprio status de humano.
O fetichismo, ao meu ver, é uma prática política e erótica de recusa das categorias tradicionais de sexualidade, gênero e desejo. É uma tentativa de retomada da possibilidade de produzir, reparar e acolher as nossas próprias subjetividades desviantes, lá onde a torre de vigilância des esquisites não manda em nada. Ou quase nada.
O fetichismo é uma forma de política contrassexual:
Ser contrassexual é usar o próprio corpo como um laboratório de resistência contra a normatividade sexual (Preciado, 2014).
Eu ainda acredito no poder revolucionário da empatia, da contrassexualidade e do amor-camaradagem. E eu acredito que, de alguma forma, seja possível combinar esses conceitos utópicos em uma espécie de ação fetichista contra-colonial.
Do que eu falo quando falo de pedagogia fetichista?
Quando falo de pedagogia fetichista, quero pensar em específico sobre as práticas de educação e produção de conhecimento, relacionadas ao universo fetichista.
O universo fetichista pode incluir práticas como restrição de movimentos, asfixia, indução de dor, perfuração com agulhas, manipulação de fogo, shibari, entre outras. Tais práticas implicam estudos rigorosos, vocabulários específicos e técnicas que devem ser compreendidas antes de serem aplicadas — motivo pelo qual os espaços de educação fetichista são fundamentais.
Alguns exemplos de espaços de educação fetichista são:
oficinas de técnicas fetichistas (spanking, shibari, fireplay, restrição de movimentos, perfuração com agulhas, etc);
munchs;
grupos de estudos fetichistas;
eventos de amarração públicos (como Atados no Parque);
dōjō de shibari;
aulas particulares e grupais;
festas e eventos públicos com abertura para plays BDSM;
entre outros.
Dito isso, é preciso enfatizar o óbvio: práticas fetichistas são exclusivamente realizadas por pessoas ADULTAS em estado mental e físico capaz de CONSENTIR. Qualquer prática que fuja a esta regra é abuso e não tem a mais remota conexão com o mundo fetichista.
Notas para uma pedagogia fetichista crítica
Certo, já entendemos que:
Quando falo de pedagogia fetichista, eu quero pensar especificamente sobre os métodos e bases teóricas da educação em espaços fetichistas;
E quando falo de pedagogia fetichista “crítica”, é porque penso o fetichismo também como um posicionamento político e uma possível ação contrassexual, dentro de um modo de organização do mundo que está em colapso.
Eu entendo a educação como prática de liberdade, resistência e transformação social. Devo isso a bell hooks, Paulo Freire e a todos os meus afetos que atuam como mentores de todos os tipos.
Por isso, proponho que a pedagogia fetichista crítica é necessariamente uma pedagogia engajada (hooks, 2013). Ou seja, é uma abordagem educacional que busca romper com modelos autoritários de ensino e estimular o diálogo crítico e afetivo entre professores e alunes. Aqui, as experiências e identidades de cada pessoa são partes fundamentais para o processo de aprendizagem.
Inspirado por bell hooks, Paulo Freire, Patricia Hill Collins e T. Angel, gostaria de propor alguns elementos para esboçar uma pedagogia fetichista crítica:
— A pedagogia fetichista crítica rejeita a ideia de educação "neutra", porque reconhecemos que todo conhecimento está inserido em contextos sociais, históricos e políticos específicos;
— A pessoa educadora pode e deve se posicionar ética e politicamente;
— As práticas de educação fetichista problematizam relações hierárquicas não-consentidas entre mentores e estudantes, baseadas em normativas sociais implícitas. Espaços de ensino mais colaborativos são bem-vindos;
— Somando-se a isso, as práticas de educação fetichista reconhecem a centralidade do consentimento para as relações entre mentores e estudantes. Ninguém é obrigade a se envolver em qualquer atividade que não deseje, tampouco deve ser discriminade por isso;
— Os espaços de educação fetichista têm como horizonte a emancipação social, e não a dominação. Por conta disso, esta proposta pedagógica é fundamentalmente antirracista, anticapitalista, anticapacitista, antiespecista e contracolonial;
— A pedagogia fetichista crítica reconhece que as opressões são múltiplas e interseccionais (raça, classe, gênero, território, sexualidade, etc);
— A pedagogia fetichista crítica é comprometida com o letramento racial, de gênero e sexualidade;
— O ensino deve cultivar a autonomia e o pensamento crítico. Entendemos que não há uma única forma correta de ensinar e aprender, nem um só jeito certo de fazer as coisas;
— Experiências de vida, identidade social (gênero, raça, classe, sexualidade, etc) e afetos des estudantes e mentores são fontes legítimas de conhecimento;
— Os espaços de educação fetichista têm como horizonte a diversidade e a acessibilidade. Políticas de ação afirmativa, como bolsas integrais ou parciais para pessoas dissidentes, são estimuladas no caso de eventos pagos;
— Ensinar é um gesto de cuidado, afeto e responsabilidade para com a nossa comunidade.
Não se preocupe: não vou roubar o seu nicho de mercado
Poisé. Ainda tem muita gente por aí que acha que o saber fetichista deveria se manter restrito a um grupo seleto de iniciados.
Segundo a linha de raciocínio desse pessoal, facilitar o acesso ao universo fetichista vai fazer com que um monte de gente despreparada saia por aí praticando BDSM de maneira irresponsável. Eu discordo visceralmente desse ponto de vista.
Acredito que viabilizar espaços acessíveis e inclusivos para o compartilhamento de saberes fetichistas específicos é uma política de redução de danos.
Até porque pessoas trans, pretas, indígenas, pobres e dissidentes, de modo geral, encontramos mais barreiras para acessar espaços compartilhados de educação — consequentemente, estamos mais susceptíveis a sofrer coerções, agressões, manipulações, silenciamentos e experiências fetichistas malsucedidas.
Existem também pessoas que acreditam que, ao disseminar as informações que possuem sobre as práticas fetichistas, vão acabar perdendo o seu status de ✯ sensei lendário ✯ do mundo fetichista. Paciência.
Quando coletivizamos o nosso conhecimento, fortalecemos os nossos vínculos e aprimoramos o nível das nossas técnicas e práticas em grupo. Isso cria bases mais firmes, solidárias e confiáveis para as nossas comunidades.